A recém-lançada campanha Boa Fé, que visa a estimular a devolução espontânea de obras de arte, peças sacras e documentos históricos, entre outros tesouros desaparecidos ao longo dos anos do patrimônio cultural mineiro, começa a colher frutos. À frente da iniciativa, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) recebeu uma imagem de São Sebastião e quatro castiçais de prata, objetos que serão analisados para identificação, e, dependendo das pesquisas, restituídos aos locais de origem. Mas esse é apenas o capítulo mais recente de duas décadas de ações pelo resgate de peças da memória do estado, em uma espécie de cruzada contra décadas de dilapidação da história que mobilizou autoridades de vários escalões, imprensa e comunidades, e que frutifica até hoje.
A devolução anônima das cinco peças marca, de forma promissora, os 20 anos da grande campanha em Minas para resgate de bens culturais saqueados de igrejas, capelas, museus e outros espaços históricos na capital e no interior. Com o trabalho, Minas se tornou o primeiro estado brasileiro a ter uma política específica para o setor, como mostra o Estado de Minas a partir de hoje na reportagem “História resgatada”.
O marco inicial dessas ações, em 2003, foi a luta em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, pela volta de três anjos barrocos que teriam sido vendidos na década de 1950 e, meio século depois, virariam destaque em um leilão no Rio de Janeiro (RJ). Após longa batalha e com decisão judicial favorável, as esculturas retornaram ao Santuário Arquidiocesano de Santa Luzia, onde ainda hoje podem ser admiradas pelos que têm o privilégio de visitar o templo do século 18.
O caso ganhou amplitude e repercussão nacionais a partir da primeira denúncia sobre o pregão, publicada pelo Estado de Minas em 25 de julho de 2003. Uma das personagens de destaque desse resgate da história mineira foi Luzia Vieira, hoje com 98 anos, servidora pública federal aposentada e testemunha, na época, de que “os meninos”, conforme ela chama os anjos barrocos, realmente pertenciam ao acervo da igreja.
Confiante no trabalho, o coordenador das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais (CPPC/MPMG), Marcelo Azevedo Maffra, informa que já foram recuperados desde então cerca de 700 bens culturais mineiros, especialmente peças sacras, e mais de mil documentos históricos localizados nos últimos anos. Se boa parte foi restituída, outra aguarda identificação em reservas técnicas de órgãos estaduais, a exemplo do Museu Mineiro, do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, em BH, do Memorial da Arquidiocese da capital e do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto.
TECNOLOGIA VIROU ALIADA NO ESFORÇO
Com os novos tempos, vieram ferramentas para ajudar nas investigações. Contando com os avanços tecnológicos, as ações, antes concentradas em antiquários e feiras de antiguidades, miram hoje as vendas pela internet – e muitas peças já foram recuperadas ao serem comercializadas on-line. De olho, o MPMG, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), criou a plataforma virtual Somdar (somdar.mpmg.mp.br), com dados sobre 2,5 mil bens culturais entre desaparecidos e resgatados. A novidade, adianta Maffra, está no Somdar itinerante, para ampliar informações sobre os itens históricos.
Há espaço para denúncias, atualização de dados estatísticos e, principalmente, acesso para o internauta colaborar no combate ao tráfico de imagens religiosas, peças de altares, livros raros e tantas outras obras de arte que são alvo da cobiça. Afinal, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (Unesco), depois das drogas e armas, o comércio ilegal de bens culturais é o mercado ilícito que mais movimenta recursos financeiros no mundo.
Para denunciar
Quem tiver informações sobre peças desaparecidas e quiser fazer denúncias pode acionar:
Ministério Público de Minas Gerais (MPMG)
E-mail: [email protected] – Telefone: (31) 3250-4620.
Correspondência: Rua Timbiras, 2.941, Bairro Barro Preto, Belo Horizonte, CEP 30140-062.
Blog: patrimoniocultural.blog.br.
Boa Fé: para aderir à campanha, enviar e-mail para [email protected], com o título “Campanha Boa fé”, anexando, se possível, fotografias, vídeos ou documentos relativos ao bem cultural para devolução. Também, se possível, informar as circunstâncias da aquisição ou recebimento (local e data aproximada), local de origem e características e dimensões aproximadas do bem
Iphan
Informações: no site www.iphan.gov.br é possível verificar o banco de dados de peças desaparecidas.
E-mail: [email protected] para recebimento de denúncias anônimas
Telefones: (61) 2024-6342, 2024-6355 ou 2024-6370, do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização (Depam)
Iepha/MG
Site: www.iepha.mg.gov.br – Telefones: (31) 3235-2812 ou 2813
2003: a reação em período de perdas
O ano de 2003 foi traumático para o patrimônio cultural de Minas Gerais. Mas representou também uma espécie de marco de renascimento. Depois de quase um século de assaltos a templos católicos e museus, entre outros monumentos históricos, houve na época 80 furtos, um pouco menos do que as 92 peças desaparecidas em 1994. Entre os objetos sacros mais visados pelos ladrões estavam imagens de Nossa Senhora do Rosário, Santana Mestra e São Sebastião, além de castiçais, coroas, resplendores, cálices, crucifixos, patenas (aparato litúrgico em que é colocada a hóstia durante celebrações) e custódias (ou ostensório, peça de ourivesaria em que se expõe a hóstia consagrada).
Em sucessivas reportagens, o EM denunciava na época a situação desesperadora para as comunidades que eram alvo de ladrões – entre elas “Barroco dilapidado”, publicada em 3 de fevereiro de 2003, no caderno “Gerais”. Nela, moradores católicos do interior do estado se preocupavam com a insegurança dos templos e temiam a ação contínua dos criminosos. A fim de garantir o acervo, algumas paróquias passaram a guardar as imagens em cômodos com grades, como se fossem celas de uma cadeia.
Passadas duas décadas de esforços e mobilização, as expectativas de resgate de parte desse tesouro que segue desviada são promissoras, diz o coordenador das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais (CPPC/MPMG), Marcelo Azevedo Maffra. E o otimismo se fundamenta em iniciativas como a recém-lançada campanha Boa Fé, para estimular a devolução espontânea de obras de arte, peças sacras e documentos históricos, entre outros bens desaparecidos.
EVOLUÇÃO
Na sala da CPPC/MPMG, no Bairro Barro Preto, Região Centro-Sul de BH, Marcelo Maffra mostra a imagem de São Sebastião, que traz um capuz cobrindo parte dos longos cabelos, e quatro castiçais de prata entregues espontaneamente (o responsável pela devolução não terá o nome divulgado), como parte da campanha Boa Fé. As peças são também símbolo de um momento importante das ações em Minas, com base na conscientização da população.
Na mesma sala, equipe da CPPC trabalha no cadastramento e identificação de cerca de mil documentos apreendidos recentemente na Operação Devolva-me, em Brasília, com trabalhos coordenados pelo MPMG e apoio do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e das polícias militares das duas unidades da federação.
“As últimas duas décadas foram marcadas por avanços e construção de políticas públicas para combate a furtos e desmonte de quadrilhas especializadas na prática de crimes contra o patrimônio cultural, especialmente em Minas”, explica Marcelo Maffra, que destaca ainda, nessa escalada, a construção de parcerias com as comunidades, organizações não governamentais, bem como órgãos públicos e privados.
Durante esse período, afirma, o MPMG assumiu protagonismo nacional, com atuação especializada na defesa e proteção do patrimônio cultural. Destacou-se ainda como única unidade do Ministério Público do país a ter uma coordenadoria específica para a pauta patrimonial, com atribuição nos 853 municípios mineiros (298 comarcas).
“Atualmente, o MPMG é exemplo de atuação bem-sucedida, e nosso trabalho tem servido de inspiração para diversas unidades do Ministério Público no país. Nos últimos anos, foram propostas diversas ações judiciais para busca e apreensão de bens culturais indevidamente subtraídos dos seus locais de origem”, diz o coordenador da CPPC. “Um aspecto significativo está nas inúmeras campanhas de conscientização da proteção dos bens culturais mineiros.” Mas o volume de tesouros que se estima terem sido subtraídos do patrimônio do estado ao longo da história mostra que esse é um trabalho longe do fim.
DUAS DÉCADAS DE MOBILIZAÇÃO
Iniciativas que marcaram a grande campanha para resgate do patrimônio desaparecido em Minas
» Ação pioneira da Associação Cultural Comunitária de Santa Luzia (Grande BH) para resgatar anjos barrocos do Santuário Arquidiocesano de Santa Luzia, que iriam a leilão no Rio de Janeiro (RJ) e estavam em poder de um colecionador.
» União de vários órgãos e instituições mineiros em força-tarefa para resgate de bens culturais: Ministério Público de Minas Gerais, Ministério Público Federal, Iphan, Iepha, Igreja Católica, Polícia Federal, Polícia Militar, Polícia Civil e outros.
» Exposições com bens apreendidos e que tiveram lugar no Museu Mineiro, no Palácio das Artes e em espaço do Estado de Minas, em Belo Horizonte. Foram feitas ainda mostras itinerantes pelo interior do estado.
» Campanhas do Ministério Público, com cartazes, para divulgação dos bens desaparecidos.
» Criação da Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais (CPPC/MPMG), que teve como primeiro coordenador o promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda.
» Criação de bancos de dados, pelo MPMG, Iphan e Iepha para divulgação de bens desaparecidos. A mais recente, com os avanços tecnológicos, está no Sistema de Objetos Mineiros Desaparecidos e Recuperados (Somdar), em parceria do MPMG com a Universidade Federal de Minas Gerais.
» O Somdar tem à frente o MPMG, via CPPC, e reúne em uma única plataforma todas as informações presentes nos bancos de dados sobre os bens culturais desaparecidos em Minas. Assim, consolida dados antes restritos a cada órgão de fiscalização.
» Campanha Boa Fé, recém-lançada pelo MPMG, para estimular a devolução espontânea de bens culturais que se encontram em mãos de particulares.